por Marco De Petrillo

No começo do século XX, quando a chama da verdadeira espiritualidade já minguava no Ocidente, foram publicados na Inglaterra três livrinhos anônimos que exprimiam o anseio de uma alma por Deus e a transformação dela sob Sua graça. Os títulos eram A Fonte de Ouro (1919), O Romance da Alma (1920) e O Retorno do Filho Pródigo (1921). A originalidade desses livros poderia ter feito os leitores pensarem que eles haviam sido escritos por um místico da Idade Média, mas na verdade eles eram obra de alguém que estava vivo na época.

Ninguém teria suspeitado que o autor anônimo era Lilian Staveley (1871-1928), que cresceu e passou a vida inteira na alta sociedade britânica. Esse meio não é com certeza onde se esperaria encontrar uma mística, e de fato a família de Lilian não tinha interesse religioso além da frequência convencional à igreja. Apesar disso, mesmo em criança, Lilian tinha uma tendência para a vida interior — uma fé ingênua, com predomínio de um elemento de temor. Já na adolescência, desenvolveu uma profunda sensibilidade à beleza da natureza, que provocava-lhe um anelo indefinível e uma necessidade de solidão. Isso contrastava com o fascínio da alta sociedade, e fez com que Lilian vivesse uma vida dupla, dividida entre as duas. Essa atração pela beleza na natureza mais tarde mostrou ter sido só o prelúdio de seu romance com Deus. 

Apesar de não estudar filosofia nem ler livros religiosos, a jovem Lilian tinha uma mente curiosa. Durante alguns anos em sua mocidade ela não conseguia conciliar as verdades demonstradas pela ciência, que apelavam primeiramente aos sentidos, com “os dogmas que não podem ser provados, estabelecidos pela igreja como sendo necessários à salvação”. Isto a levou a abraçar o ateísmo, e daí a uma luta dolorosa entre sua mente e seu coração — uma ideologia de falsas certezas materialistas não satisfazia a necessidade que ela sentia da fé, e das realidades para as quais a fé abre a porta. A fé, ela intuía, era natural à alma, que sem ela não conseguia ser feliz. A resposta de Lilian a essa intuição foi o retorno à fé e um progressivo despertar para o apelo de seu Bem-Amado. Em seus livros, ela exprimiu sua jornada a Ele, com suas flutuações entre períodos de proximidade e de afastamento, com grande sensibilidade e força.

Considerando o quão distante seu meio social estava da espiritualidade, não é de surpreender que Lilian Staveley tenha preferido manter sua relação com Deus oculta de todos. Ela não somente publicou seus livros de forma anônima, mas nunca compartilhou nada sobre sua vida interior nem sequer com seu adorado marido, o General de Brigada William Cathcart Staveley. Com seus leitores, contudo, ela se abriu — e de forma tão sincera e próxima, que não temos como ignorá-la. Assim como as pessoas santificadas dos tempos antigos, Lilian nos oferece um precioso vislumbre da vida secreta de um amante de Deus, e ao fazê-lo convida-nos a nos apressarmos também para viver o romance de nossa alma.

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O intenso anseio por Deus que vemos em Lilian Staveley é o ímpeto para o interior, para o Reino de Deus que está dentro de nós. Essa vocação busca, para além da observância religiosa comum e da simples atitude de fé, algum grau de proximidade de Deus ainda nesta vida. Como Lilian diz, “algo em nosso íntimo para o qual não conseguimos achar um nome, algo sutil, secreto e estranho, exclama: ‘Mas preciso de mais do que isso, isso não é suficiente; preciso encontrá-Lo e conhecê-Lo pessoalmente’.”

Essa vocação pertence ao campo do misticismo ou esoterismo. O esoterismo cristão corresponde em suas linhas gerais àquilo que o Hinduísmo chama a perspectiva de bhakti, na qual a relação do homem com Deus é determinada pelo amor e pela devoção — e que é contrastada com a perspectiva de karma, que acentua a ação e as obras, e a de jnana, que dá ênfase ao discernimento e à busca do conhecimento de Deus. Numa via de Amor, o homem deve converter sua vontade a uma harmonia total com a vontade de Deus. Segundo Lilian, o objetivo da Via é “um mistério de duas vontades em uníssono”.

Lilian Staveley é assim um exemplo não do “guerreiro” ou do “conhecedor”, mas do “amante” de Deus. Ela é também aquilo que a tradição cristã chama de “theodidaktos” (“ensinado por Deus”) — e que a mística islâmica chama de “fard” (“solitário”) —, alguém que tem o dom de uma compreensão espontânea do Divino. Enquanto a maior parte das pessoas deve seguir seu caminho para Deus em uma via espiritual pré-estabelecida, os “solitários” são a exceção que confirma a regra. O caminho deles é algo só entre eles e Deus. Embora em geral continuem a pertencer a um mundo tradicional, eles são independentes dele. Lilian foi instruída diretamente por Deus em sua via para Ele, e assim, apesar de viver no mundo protestante, sua experiência espiritual está mais ligada à natureza das coisas do que a um credo particular. Ela chegou reconhecer explicitamente a universalidade das religiões, afirmando que, embora seja Jesus quem guia os cristãos, para os budistas “Gautama tem permissão de fazer o mesmo”.

Por ser uma “solitária” e “ensinada por Deus”, a realização de Lilian é eminentemente pessoal, e portanto não é transmissível da mesma forma que métodos espirituais regulares. Em outras palavras, ela não tem como ensinar uma via que outros possam seguir. Mas ela nos dá seu exemplo — o testemunho de uma alma profundamente espiritual e absorta em Deus — e lições das quais temos muito a aprender.

Por exemplo, desde muito jovem, Lilian tinha um marcado senso da beleza e do sagrado, dois pré-requisitos fundamentais para a vida espiritual. Antes de ter uma consciência clara de Deus, ela encontrava-se com frequência num estado de contemplação extática enquanto “assimilava e desfrutava interiormente da essência ascendente da beleza” por meio da natureza. Também, numa visita a Roma com a família, ela ficou plena de reverência ao ver a figura sacerdotal do Papa Leão XIII. Ao notá-la no meio de uma multidão, o venerável pontífice abençoou-a, e esse momento deixou em Lilian uma impressão indelével. Ela lembrou mais tarde: “Não havia mais nada no mundo senão santidade — e minha alma arrebatada.”

Além da compreensão da beleza e do sagrado, há, subjacente à visão de mundo de Lilian, uma compreensão da natureza, do destino e da vocação do homem — a saber, de sua perfeição e beleza originais como imagem de Deus (imago Dei), sua queda daquela posição elevada e sua necessidade de ser trazido de volta à pureza de sua condição primordial. Esse ensinamento sobre a “transmutação do humano em divino” está no coração das religiões de todo o mundo e constitui a base e a razão de ser de todas suas doutrinas e métodos. Se a alma tem de morrer uma morte por cada erro, como diz Lilian, é porque o pecado é a dissemelhança a Deus; aproximar-se d’Ele é remover tudo o que é contrário a Ele, “despir o homem velho” e “revestir o homem novo”, ou “negar a negação”. Lilian nos insta a “que nos comparemos em todas as coisas com Deus, a cuja semelhança fomos feitos, e, observando tão bem quanto pudermos os terríveis abismos entre nós e Ele, que façamos de tudo que pudermos, com lágrimas, humildade e esforço constante, para compensar nossas deficiências aos olhos d’Ele.”

Essa “tremenda tarefa” de “elevar o humano até o Divino” só pode ser realizada “com meios divinos” — e isso nos traz à compreensão de Lilian da oração, e ao papel que ela dá a esta em sua relação com Deus. De maneira muito sucinta, a oração é “uma incessante comunhão interior” com Deus, a forma essencial pela qual a alma exprime seu amor por Deus, aumenta seu apego a Ele e se abre para Sua ajuda constante e transformadora. “A oração é a aliança de ouro entre nós e Deus.”

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É surpreendente que os escritos de Lilian Staveley parecem ter sido relativamente pouco notados. Talvez isso se deva ao estado geral de inércia espiritual e dinamismo mundano do homem moderno, ou a uma tendência dos crentes ao confessionalismo e ao formalismo, ou ainda à atração das pseudo-espiritualidades não-ortodoxas. O fato é que, tendo sido publicados no começo do século XX pela editora inglesa John M. Watkins, eles só foram publicados de novo em inglês em 1982, com a edição de A Fonte de Ouro da editora americana World Wisdom, e em 2008, com uma reunião de textos de seus três volumes sob o título O Segredo de uma Cristã: uma Jornada a Deus nos Tempos de Hoje, da mesma editora. Existem traduções dos livros de Lilian Staveley em francês e espanhol, mas esta é a primeira vez que qualquer um deles é traduzido para o português.

Apesar disso, os escritos de Lilian Staveley chegaram a atrair a atenção de algumas figuras de relevo. Sir Francis Younghusband, escritor, diplomata e explorador dos Himalaias, comparou-a a Sri Ramakrishna e a Santa Teresinha de Lisieux, e observou que suas experiências espirituais “têm notável semelhança com as dos místicos hindus”. Evelyn Underhill, uma autoridade em misticismo comparado, incluiu A Fonte de Ouro — junto com as obras de Ricardo de São Vítor, São Bernardo, Tomás de Kempis, Richard Rolle, Walter Hilton, e Juliana de Norwich — entre as “mais elevadas expressões literárias do aspecto íntimo e pessoal do amor espiritual”. E Frithjof Schuon, eminente expoente da Sophia Perennis em nossos dias, notou a qualidade de Lilian como alma santa do tipo solitário, vendo nela uma confirmação da legitimidade religiosa e eficácia espiritual do Protestantismo.

Seja tudo isso como for, o que mais importa não é o quão conhecida é uma autora, mas sim o que cada leitor pode aprender com ela. E, aqui, a força de A Fonte de Ouro está na experiência direta que Lilian Staveley tem da presença de Deus, combinada com o fato de que ela é quase uma contemporânea nossa. Este livro nos prova que uma vida de profundo amor a Deus não é algo que pertence a uma época ou cultura distantes da nossa, mas sim algo que está ao nosso alcance. Somos feitos para Deus — para lembrar d’Ele e ser reunidos com Ele — e os homens e mulheres de nossos dias podem, com Sua graça, chegar a uma relação direta e intensa com Ele ainda nessa vida, se tão somente nos despirmos do “velho homem” e seus falsos amores, e nos voltarmos para Deus com uma intenção sincera. Se tal vocação for intimidante, nosso conforto é a misericórdia Divina, que, como é dito, é pródiga nesta hora tardia. Não é só a Lilian Staveley, mas a todos nós, que o Bem-Amado diz: “Anseia por Mim, e eu Me mostrarei. Deseja-Me com grande desejo, e Eu Me farei encontrar.” E essas palavras ecoam aquele convite antigo e sempre vivo: “Pedi, e ser-vos-á dado; buscai, e encontrareis; batei, e a porta vos será aberta.”


(Marco De Petrillo gentilmente colaborou com este prefácio para a edição portuguesa de A Fonte de Ouro, de Lilian Staveley.)